sexta-feira, 10 de outubro de 2008

CHOCALHOS EM ALPEDRINHA

Quem há anos viu ou viveu em aldeias e pequenas vilas da Beira (ou de Trás-os-Montes) e hoje por lá passe, mesmo em Setembro, dificilmente escapará a um sentimento de desolação, que não atenuam alguns sinais de progresso nem algumas novas casas tipo “maison”: montes desnudados, matas mortas (ardidas), terras boas por cultivar, quintais ao abandono, portas e janelas cerradas, ruas desertas ou apenas – a penas – percorridas por dois ou três velhotes.
E talvez o pior ainda esteja para vir.Com a decréscimo da natalidade, com a falta de incentivos para a fixação da população local, com a fuga dos jovens aos pesados e inglórios trabalhos no campo, com a emigração revigorada, com a atracção pelas cidades grandes (não só Lisboa ou Porto mas também outras, como a que está a crescer entre as serras da Estrela e da Gardunha), onde há hospitais, escolas e hipóteses de empregos aparentemente decentes (e às vezes tão indecentes), essas pequenas povoações arriscam-se a tornar-se em poucos anos fantasmáticas necrópoles, a menos que as ocupem os espanhóis, ou a transformar-se em ruínas, oferecidas às emoções passageiras de turistas sado-masoquistas.
Alguns governantes, deslumbrados com Bruxelas, ou empenhados em fazer de Lisboa uma cidade de 5 milhões – sem os quais, disse há tempos um figurão, a capital não terá peso nem dignidade internacional -, parecem não dar por isso; mas outros desunham-se em busca de soluções para dar vida à sua terra, e para que não se afunde ou morra à fome um país que já foi de marinheiros e de camponeses. Tiro o meu chapéu metafórico – pois também o outro caiu em desuso – aos autarcas que, por exemplo, já sem rotas marítimas, inventaram as rotas beirãs das “aldeias históricas”, ou das “aldeias do xisto”. E a festa dos chocalhos de Alpedrinha.
Desta festa não falam os volumes já antigos da Etnografia de Jaime Lopes Dias, ou os volumes recentes que Jorge Barros e Soledade Martins Costa dedicaram às Festas e Tradições Portuguesas. Na verdade, ela só nasceu em 2002. E é já um grande sucesso, mesmo que alguns jornais e televisões lhe não dediquem o tempo que dedicam a um jogo de futebol da divisão de honra e à cassete – ou equivalente – de um cantor pimba ou de um político partidário.
Qualquer festa em Alpedrinha se arrisca a ter sucesso, como têm as suas festas de S. Miguel Arcanjo, ou de S. Sebastião, ou de S. António. Desde logo porque Alpedrinha é sempre uma festa. Festa dos sentidos, festa da beleza, beleza de festa. Quem passeie pelas suas ruas íngremes e apertadas entre elegantes fachadas, janelas e balcões, quem se demore diante da matriz, da capela do Leão, do Palácio do Picadeiro (finalmente restaurado), quem beba água no Chafariz de D. João V ou na Fonte da Fome, quem suba ou desça o caminho romano e se confronte com os tons do granito ou com a vertigem selvagem de penhas e penhascos, quem de pequenas varandas rochosas demore o olhar nas curvas de Alcongosta, nos anfiteatros de Castelo Novo, nos morros de Monsanto e Penha Garcia, na extensa campina de Idanha e nos vastos campos de Castelo Branco, quem vá espreitar do Alto da Portela o ventre fecundo da Cova da Beira e a imponência deslumbrante da Serra da Estrela, e quem avance ou descanse debaixo de castanheiros, carvalhos, pomares e vinhedos, ouvindo talvez a música alegre de melros e de rolas, respirando o ar puro e o aroma que vem de jardins edénicos... -, quem fizer isso não pode conformar-se com epítetos tão pirosos como os de “Princesa da Gardunha”, “Capital do Bem Haja” e “Sintra da Beira” (melhor seria dar Sintra como a “Alpedrinha da Estremadura”) e terá quase a certeza de estar na mais fabulosa paisagem de Portugal, que só admitirá a concorrência do Douro profundo.
Mas a festa – ou o festival, ou a feira – dos chocalhos exibe outros motivos para atrair gente a uma terra que em 1925 tinha 1966 habitantes, e que hoje só tem cerca de 1100. Por um lado, mobilizou os donos de muitas casas para nas suas adegas, nos seus pórticos, nas suas salinhas térreas exporem e venderem os seus produtos agrícolas ou artesanais, das frutas aos embutidos e às rendas, e a sua variada culinária caseira, com peixinhos da horta ou de escabeche, chirovias, maranhos, febras, cabrito, filhós, esquecidos, geleias, arroz doce, ginjinha ou jeropiga. Que delícia.
Alpedrinha tornou-se assim durante três dias um original centro comercial com tasquinhas e lojinhas bem mais saudáveis e divertidas (e baratas) do que as dos comuns “shoppings” que, todos parecidos, avançaram nos últimos anos pelo interior do país como os invasores franceses comandados pelo Loison, que há exactamente dois séculos saquearam casas e igrejas alpetrinienses, com muita riqueza local a ir para o Maneta; por outro lado, valeu-se do objecto e do símbolo arcaico que se chama chocalho: objecto e símbolo imediatamente relacionável com o gado, também presente na festa – lembrando os rebanhos transumantes das serras da Estrela e da Gardunha a caminho dos pastos de Idanha ou do Alentejo -, que sinaliza ou identifica um vivo, eventualmente perdido ou desgarrado, que afasta ou atemoriza males e inimigos, e que, representando no badalo a intermediação entre o céu e a terra., vale sobretudo como instrumento musical e de alegria. Jaime Lopes Dias lembrou que “é corrente na Beira Baixa tocar os chocalhos em dia de casamento de velhos”; na minha aldeia os garotos e rapazes saíam no sábado de aleluia à rua carregados de chocalhos, que iam tocar aos que não tinham cumprido o dever pascal, a desobriga; e António José Salvado Mota, o autor da preciosa Monografia d´Alpedrinha, que com justiça é já nome de uma rua local, também informou que nesse mesmo sábado se ouviam em frente da formosa matriz quinhentista “centenas de assobios, gaitas, chocalhos, campainhas, cornetas e principalmente ràxenois” (“gaitas feitas de casca de castanheiro”).
Na festa setembrina de Alpedrinha ecoavam sem intervalos pelas ruas apinhadas não só os sons de chocalheiros, como os alentejanos de Vila Verde de Ficalho, com os enormes chocalhos a bater ritmadamente nas coxas duras, ou como o empresário do Alcaide, que trazia os chocalhos presos à cintura bamboleante, mas também de pifareiros, gaiteiros, acordeonistas, trompetistas, tocadores de harmónio, de pandeiretas, de concertinas, de bombos ou zabumbas e até de guitarras e violas, que podiam acompanhar o fado de Santo Estêvão cantado junto de uma parreira mais bonita do que a de Alfama. Nas arruadas, tocava-se, cantava-se e dançava-se à rédea solta, ou como em rusgas sanjoaninas; e podiam cruzar-se, sem se atropelarem, os artistas dos Foles da Beira, dos bombos e gaitas do Paul, e da tuna da ESE de Castelo Branco.
Com a noite avançada, saía de uma tasca a voz avinhada de um tenor: Ó Laurindinha / Vem à janela....
Que logo teve na rua a paródica resposta rimada: Ó Laurindinha / Vem a Alpedrinha...
E se for à festa dos chocalhos nem a Laurindinha nem ninguém se arrependerá -, pois não há em Portugal festa como esta. A deste ano já passou. Mas a do ano que vem ainda vai ser melhor.

2008 Arnaldo Saraiva / Jornal do Fundão

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